A crise energética e geopolítica que ameaça a Europa

December 09, 2022 | Categoria: Energy

O Estado de S. Paulo 

Energia A arma energética de Putin ameaça matar mais gente na Europa do que sua artilharia na Ucrânia Dependência Países de todo o continente adotaram medidas excepcionais para reduzir o uso de energia, afastando-se da fornecedora principal, a Rússia.

Se perguntamos aos amigos da Europa em torno do mundo o que eles pensam a respeito das perspectivas do velho continente, sua resposta são duas emoções. Uma é admiração – na luta para ajudar a Ucrânia e resistir à agressão russa, a Europa demonstrou unidade, determinação e uma virtuosa disposição para suportar custos enormes. A outra é alarme – um aperto econômico brutal colocará em teste a resiliência da Europa em 2023 e além.

Há um temor crescente de que a redefinição do sistema global de energia, o populismo econômico dos EUA e fricções geopolíticas ameacem no longo prazo a competitividade da União Europeia e dos países europeus não membros do bloco, incluindo o Reino Unido. Não apenas a prosperidade do continente está em perigo, mas a saúde da aliança transatlântica também está em risco.

Não se deixem enganar pela maré de boas notícias da Europa nas últimas semanas. Os preços da energia baixaram e uma onda de clima ameno resultou em estoques de gás quase completos. Mas a crise de energia ainda apresenta perigos. Os preços do gás natural estão mais altos do que sua média no longo prazo. Em 22 de novembro, a Rússia ameaçou fechar o último gasoduto ainda em operação para a Europa, enquanto ataques de mísseis causaram apagões em toda a Ucrânia. Os estoques de gás da Europa precisarão ser reabastecidos novamente em 2023, dessa vez sem gás encanado dos russos.

CASTIGO. A arma energética de Vladimir Putin impingirá castigo além da Ucrânia. Nossa simulação sugere que, em um inverno normal, uma elevação de 10% nos preços reais da energia é associada a um aumento de 0,6% nas mortes. Portanto, a crise energética deste ano poderia causar mais de 100 mil mortes além da média de idosos em toda a Europa. Se tal panorama se concretizar, a arma energética de Putin poderia tirar mais vidas fora da Ucrânia do que sua artilharia, seus mísseis e drones tiram no país. Esta é mais uma razão que torna a resistência da Ucrânia à Rússia uma luta também de toda a Europa.

A guerra também está criando vulnerabilidades financeiras. A inflação da energia está transbordando para o restante da economia da Europa, criando um acentuado dilema para o Banco Central Europeu. A instituição precisa aumentar as taxas de juros para controlar os preços. Mas se for longe demais, poderia desestabilizar os membros mais fracos da zona do euro, assim como a endividada Itália.

Além de a crise energética assolar o continente, a guerra expôs uma vulnerabilidade no modelo da empresa europeia. Muitas corporações industriais da Europa, especialmente as alemãs, vinham dependendo do abundante fornecimento de energia da Rússia. E muitas companhias também se tornaram mais dependentes de outra autocracia, a China, como mercado final. A perspectiva de relações cortadas com a Rússia, custos estruturalmente mais elevados e um afastamento entre o Ocidente e a China tem ocasionado alterações de cálculos em diretorias de muitas empresas.

Esse medo se amplifica em razão do nacionalismo econômico dos EUA, que ameaçam concentrar a atividade no Atlântico sob um redemoinho de subsídios e protecionismos. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden envolve US$ 400 bilhões em financiamentos para energia, manufatura e transporte – e inclui provisões para beneficiar produtos fabricados nos EUA. De muitas maneiras, o esquema lembra políticas industriais que a China tem perseguido há décadas.

PROTECIONISMO. Conforme os outros dois pilares da economia mundial ficam cada vez mais intervencionistas e protecionistas, a Europa, com sua peculiar insistência em respeitar as regras da Organização Mundial do Comércio sobre livre-comércio, parece otária.

As empresas já estão reagindo aos subsídios. Northvolt, uma premiada startup sueca de baterias, afirmou que pretende expandir sua produção nos EUA. Iberdrola, uma empresa espanhola de energia, está investindo duas vezes mais dentro dos EUA do que na União Europeia. Muitos diretores alertam que a combinação entre energia cara e os subsídios americanos faz a Europa correr risco de desindustrialização em massa. Basf, uma gigante alemã da indústria química, revelou recentemente planos de encolher “permanentemente” as operações na Europa. Não ajuda também o fato de a população europeia envelhecer mais rapidamente do que a americana.

DECLÍNIO. Perder investimento empobrece a Europa e alimenta uma noção de vigor econômico em declínio. Em comparação com sua trajetória de PIB pré-covid, a Europa desempenha pior do que qualquer outro bloco econômico. Das 100 empresas mais valiosas do mundo, apenas 14 são europeias. Políticos serão tentados a jogar fora a cartilha de regras e responder com os próprios subsídios, em uma escalada

armamentista de benesses corporativas. O ministro alemão da Economia acusou os EUA de “sugar investimentos”. O presidente francês, Emmanuel Macron, pediu um “despertar europeu”.

Portanto, a questão dos subsídios também alimenta tensões entre EUA e Europa. O apoio financeiro e militar dos americanos à Ucrânia excede vastamente o europeu; e à medida que se inclinam para a Ásia com objetivo de enfrentar o desafio da China, os EUA se ressentem pelo fato de a Europa não pagar por sua segurança. A maioria dos membros da Otan não cumpriu a meta de gastar o equivalente a 2% de seu PIB em defesa. A UE foi desconcertantemente ingênua a respeito da agressão russa. Apesar de a guerra ter feito EUA e Europa se unirem após as rupturas dos anos Trump, um conflito prolongado e tensões econômicas poderão afastá-los gradualmente outra vez. Putin e o presidente da China, Xi Jinping, adorariam isso.

Para evitar uma querela perigosa, os EUA devem perceber o quadro mais amplo. O protecionismo de Biden ameaça drenar vitalidade da Europa mesmo enquanto os EUA apoiam o Exército ucraniano e frotas de navios-tanque cruzam o Atlântico para fornecer energia para a Europa. O objetivo da política econômica de Biden é impedir que a China domine indústrias críticas: os EUA não têm nenhum interesse em sugar o investimento europeu, os americanos deveriam tornar empresas europeias elegíveis para subsídios em energia e integrar os mercados transatlânticos de energia mais profundamente.

A Europa, enquanto isso, precisa proteger sua economia contra a redução da oferta de energia. Esquemas que objetivam, corretamente, subsidiar consumidores e empresas para suprir suas necessidades básicas deveriam contrair a demanda cobrando preços mais elevados na margem, como na Alemanha. Para baixar os preços da energia no longo prazo, a Europa deveria acelerar a revolução das fontes renováveis ao mesmo tempo que mantém seus mercados de energia abertos para competição. O continente também precisa se adaptar à nova realidade em segurança. Isso significa gastar mais em defesa, para que os europeus sejam capazes de assumir o fardo à medida que os EUA voltam o olhar para a Ásia.

FRUSTRAÇÃO. Além de admiração e alarme, a outra emoção que governa as relações transatlânticas é a frustração. Os EUA estão irritados com o torpor econômico da Europa e sua incapacidade de se defender; e a Europa está ultrajada com o populismo econômico dos EUA. Mas assim como a Europa não deve ser dividida pela guerra, é vital também que a mais poderosa aliança democrática da história se adapte – e persevere.

Aproximação Um conflito prolongado e tensões econômicas poderão afastar os EUA e a Europa gradualmente outra vez.